(por Sannion, tradução de Alexandra, 2019)
O que traz as pessoas ao Helenismo normalmente são os Deuses. Claro, há uma outra pessoa que vem para a religião por conta de um fascínio por história e cultura grega antigas, ou por causa de sua grande admiração pela literatura grega (e quem não sente sua alma se agitar ao ler as primeiras linhas da Ilíada?), mas eu suspeito que esses indivíduos são a minoria. Para a maioria são os Deuses que nos conduzem até aqui – e que nos mantêm por perto mesmo depois de descobrirmos como alguns helenistas podem ser cheios de opiniões e argumentos, briguentos e impertinentes.
E, enquanto há aquelas pessoas que são levadas igualmente a todo o panteão, e aos Deuses precisamente como um panteão, de novo, não acho que isso seja muito comum. A maioria, quando descreve o que lhe trouxe ao Helenismo, irá citar uma forte atração a uma deidade em particular, ou talvez a um pequeno grupo delas. Ainda que essa atração possa mudar com o tempo, florescendo para incluir outros Deuses ou passando de uma deidade a outra, para muitos essa atração carrega um poder singular em suas vidas. Eles podem se sentir especialmente devotados a essa divindade que inspira suas grandes aspirações e a maioria dos seus dignos esforços, e eles normalmente sentem que de alguma forma a divindade retribui ao demonstrar interesse em seus desenvolvimentos e uma certa medida de proteção a eles. Esse tipo de relacionamento é normalmente chamado de patronato, o qual empresta seu modelo à Roma antiga e tem precedente no relacionamento entre Odisseu e Atena (Ilíada 2.279), Aristeas e Apollo (Heródoto 4.20), Marco Antônio e Dioniso (Plutarco - A Vida de Antônio), e talvez o mais famoso de todos: Sócrates e seu daimone (na Apologia de Platão).
Platão deu voz a o que muitos em uma relação de patronato já intuitivamente sentiam – nomeadamente que cada alma humana está sob o controle e guia de uma divindade em particular: “O Demiurgo dividiu a mistura completa em almas em igual número às estrelas, e designou a cada alma uma estrela ... e quando ele as semeou, ele designou aos Deuses mais jovens a modelagem de seus corpos mortais.” (Timeu 41-2) E, em Fedro, ele acrescenta: “Aquele que segue no comboio de qualquer Deus o honra, e imita-o o máximo que for capaz; e esse é o seu modo de vida e sua maneira de se comportar. Todos escolhem o objeto de seus afetos de acordo com seu caráter.” (252c)
Essa é, claramente, uma relação muito importante. Mesmo que o patrono de alguém não seja diretamente responsável pela criação de sua alma e corpo, nossa proximidade à divindade irá certamente ter um efeito em nossa vida. Pode ser no mais sutil dos níveis, por exemplo ao influenciar nossos pensamentos, ou por simplesmente nos fazer pensar em algo em uma luz totalmente diferente ou por exercer um tipo de força gravitacional que constantemente nos arrasta de volta a uma rede particular de associações, imagens e conceitos. E, ainda, mesmo essa coisa aparentemente simples pode ter um efeito profundo em nossas vidas, em nossos pensamentos, a uma larga extensão, formando quem somos e como reagimos ao mundo à nossa volta. Se estivermos alinhados a uma visão de mundo em particular, que estiver sob o domínio de uma única deidade e o qual existe em contra-distinção a outras divindades, iremos tomar decisões diferentes do que se estivéssemos alinhados à visão de mundo de outra pessoa. Por exemplo, a visão de mundo dionisíaca é de liberdade e abundância e transgressão de fronteiras, resultando em uma perda orgiástica de distinções. O quão diferente é da visão de mundo de lei e de ordem e de racionalidade de Atena. (Claro, é importante lembrar que os Deuses não são simplesmente ideias ou arquétipos, mas seres distintos, e, mais, como verdadeiras divindades eles representam uma totalidade que embarca tanto um ponto particular como a sua polaridade oposta: portanto, Deuses de cura também trazem pragas, a racionalidade contém um elemento de êxtase, e há um traço de luz no centro mesmo da mais vasta escuridão.)
Eu posso pessoalmente atestar que ter essa visão de mundo, essa reunião de ideias no fundo da minha cabeça, me fez tomar decisões que eu não teria tomado de outra forma. Dioniso está sempre lá me inspirando a corajosamente tomar a vida pela garganta, a experimentar coisas plenamente, a ficar ciente da beleza sensual que me circunda, e a me enraizar dentro de mim diante de qualquer ameaça que me detenha ou diminua minhas experiências de mundo. Ele é o inimigo do medo, do estático, da formalidade vazia. Eu tenho tido que fazer escolhas difíceis, tive que desistir de coisas que pensei serem importantes para mim porque no fim das contas elas estavam me estrangulando e me escravizando, e ele está constantemente fazendo eu me abrir a uma consciência mais profunda e a uma aceitação de ideias desafiadoras e aterrorizantes. A vida 'bios' de Dioniso é um processo que se desdobra, e no qual estou constantemente me debatendo para viver. Portanto, eu sou o que sou hoje muito por causa da minha devoção a esse Deus. Eu suspeito que um seguidor de Deméter ou Apolo ou Poseidon sente exatamente da mesma forma com relação ao seu Deus e ao impacto que essa deidade tem tido em sua vida.
E esse é realmente o ponto de vista que quero colocar. Não importa o quão grande um Deus é, não importa o qual plenamente ele irá preencher os desejos do devoto individual – nenhum Deus em um sistema politeísta exaure a totalidade da existência, nem exige o mundo inteiro como apenas seu, nem monopoliza as formas de ser e de cultuar. Todos os deuses existem em uma relação uns com os outros. Isso pode se dar através de oposição ou de uma certa afinidade ou mesmo uma similaridade de essência. Eles são amigos, inimigos, amantes, parentes, e mais – uma pluralidade de seres se relacionando uns com os outros e com a criação de todas as maneiras concebíveis, e seus relacionamentos formando uma tapeçaria maravilhosa e complexa que anima o cosmo e nossas vidas dentro dele. Essa é a verdade fundamental e mais bela do politeísmo – e, infelizmente, há vezes em que o relacionamento com o patrono pode ameaçar isso.
Por causa da minha identificação próxima com Dioniso e sua visão de mundo, outros relacionamentos têm ficado fechados para mim. Eu não tenho quase nada a ver com Atena, Apolo e Ártemis. Às vezes esse é o resultado de decisões que fiz na minha vida, às vezes é por causa de uma repulsão espiritual que toma efeito, tipo quando você coloca dois ímãs juntos e eles se repelem, e muito mais comumente eu simplesmente estou tão preocupado com Dioniso - tão condicionado a encontrar sua presença no mundo, que eu ou não penso em procurar pelos outros ou então eu os perco inteiramente quando eles estão presentes. Eu não acho que isso seja necessariamente uma coisa ruim, mas certamente é limitante. Há tão mais coisa lá fora que seria uma grande vergonha se eu nunca tivesse a oportunidade de ver e experimentar isso. Às vezes esse foco intenso pode realmente ser prejudicial, igual quando você só come um tipo de comida, por mais que ela seja deliciosa você está se privando de nutrientes complexos que só consegue obter através de uma dieta diversificada e bem equilibrada. Cada um dos Deuses tem certas bênçãos a nos conceder, lições a nos ensinar, experiências a compartilhar conosco. Se nos trancarmos em apenas um padrão, haverá um momento em que esse padrão nos conduzirá ao conflito e à dor. A exuberância e abundância de Dioniso pode facilmente se tonar um vício e um excesso fatal. É só olhar para Jim Morrison ou Baudelaire se você tiver alguma dúvida. Esses caras viveram a vida plenamente – e se exauriram em um tempo bem curto. Esse pode ser até um ideal romântico – de ser melhor ser consumido pelo fogo do que apagar aos poucos – mas, realisticamente, eles não poderiam sustentar aquele nível de intensidade, e sua arte, especialmente no caso do Morrison, sofreu por causa disso. No começo, seu trabalho era brilhante e profético – e no final foi ficando triste, auto-obsessivo, e patético. Imagine se ele tivesse adquirido alguma restrição e disciplina apolíneas, se ele tivesse aprendido a temperar seu espírito um pouco, a refrear seus vícios, a encontrar liberdade real em vez de renúncia niilista. Sua arte poderia ter durado anos, o permitido crescer e amadurecer e atingir todo o seu potencial. Talvez ele poderia ter mudado o mundo com suas palavras – em vez de acabar como um bêbado miserável e inchado engasgando até a morte em seu próprio vômito em uma banheira em Paris.
Meu relacionamento com Dioniso é inquestionavelmente o mais importante na minha vida – o único constante em um mundo de transformações de Proteu. Nenhum outro Deus se aproxima em afeto ao que eu tenho por ele. E, ainda assim, às vezes esses relacionamentos secundários e terciários alteraram radicalmente o curso da minha vida. Eles me abriram a novas experiências e me ensinaram lições que Dioniso ou não poderia ou sentia que deveria ser feito por outra pessoa a fim de demonstrar algo mais com mais força. Às vezes esses relacionamentos duravam muito tempo. Hermes, por exemplo, esteve presente na minha vida por muitos anos. Ele refinou minha escrita, me encorajou a fazer jornadas estranhas, me revelou coisas sobre certas partes da minha personalidade que não se enquadravam no jeito dionisíaco, e me cutucou a ter mais práticas mágicas. Ele também foi um portal pelo qual eu fui capaz de fazer contato com outros Deuses. Como consequência, eu o considero como um segundo patrono, apenas um pouco atrás de Dioniso na minha hierarquia divina pessoal. Mas há outros Deuses que vieram à minha vida por apenas muito breves períodos, cuja presença se focou em uma área ou ideia em particular, e uma vez que essa questão foi resolvida eles saíram da minha vida. Horus veio aparentemente apenas para inaugurar um interesse pela religião egípcia. Depois de cerca de uma semana ou duas de epifanias intensas, eu tive pouca coisa com ele. Zeus veio para me ensinar sobre poder e responsabilidade. Afrodite para me emprestar beleza e refinamento à vida. Sobek para me proteger durante uma transição difícil. Hécate tornou possível que eu participasse do Pantheacon em 2007. Se eu tivesse virado minhas costas a eles, me recusado a ter algo a ver com eles por Dioniso ser meu tudo, pense o quão menor seria a minha vida como resultado disso.
Eu também percebi, infelizmente, que algumas pessoas se sentem inadequadas espiritualmente por não terem uma forte coesão com um único Deus. Elas sentem como se não fossem boas o suficiente, que fizeram algo errado, que talvez essa religião não seja para elas, já que todos têm um patrono e elas não. Isso é bobagem. O relacionamento de patronato não é uma fórmula da religião grega. É uma experiência única, uma que traz benefícios especiais mas que também traz pesadas responsabilidades, e que não é a norma, seja agora ou na antiguidade. Nos tempos antigos, uma pessoa comum tendia a rezar para uma larga variedade de Deuses. Em tempos diferentes em suas vidas, Deuses diferentes teriam tido diferentes níveis de importância para elas. Ártemis cuidava das meninas, mas ao se casarem ela se ausentava até que ficassem grávidas. Héstia e Deméter se aproximavam dela na esfera doméstica. Se fossem velejar, fariam ofertas a Poseidon, um deus que não era comum ter contato com ele ao menos que se vivesse no litoral. Outros teriam sido proeminentes apenas na época de seu festival ou se entrassem em uma carreira em particular, e assim por diante. Tomados como uma totalidade através do tempo, isso criava uma possibilidade uma abundância de relacionamentos menores – que seria sim a norma, tanto hoje quanto na antiguidade, por mais comum que o relacionamento patronal possa ser. Então as pessoas não deveriam se preocupar por não terem um patrono – talvez elas apenas não descobriram um ainda, mas o Deus está lá esperando por elas, ou talvez elas não tenham um, e - em vez disso - estão destinadas a cultivar vários relacionamentos menores. Não existe um jeito certo – a vida religiosa de cada pessoa é tão única e individual como um floco de neve, para usar essa metáfora sem graça. Em vez de tentar se conformar ao padrão de outra pessoa, elas deveriam estar procurando o que funciona melhor para elas. Isso pode envolver reconhecer a existência de um relacionamento de patronato – ou superar esse conceito totalmente.
(Para ler mais, com várias fontes antigas falando sobre os patronos, clique aqui: http://www.angelfire.com/poetry/sannion/patrons.html)
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