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Foto do escritorAlexandra Oliveira

Antigos Cultos de Mistério

(texto de agosto de 2013)


Por conta de uma dúvida postada no grupo dos helenos no facebook sobre a Méter Theon, ou Magna Mater, pediram-me, em mensagem privada, para contar mais sobre suas "orgia". Originalmente, "orgia" (ὄργια, plural de 'orgion' - ὄργιον) eram ritos de êxtase característicos dos cultos de mistério gregos. "Diferentemente da religião pública ou das práticas religiosas do lar, os mistérios eram abertos apenas a iniciados, portanto 'secretos', e muitos aconteciam à noite. As orgias eram parte dos Mistérios Eleusinos, dos Mistérios Dionisíacos, e do culto à Cibele. Por serem secretas, noturnas, e não-documentadas, elas foram objeto de especulação e tratadas com suspeita, principalmente pelos romanos, que tentaram suprimir os bacanais em 186 AEC. Embora se pense que orgias envolvam sexo, a sexualidade e a fertilidade estavam relacionadas ao culto, e o objetivo principal das orgias era alcançar uma união em êxtase com o divino." (wikipedia)

Para falar do assunto, usarei como fonte principal o livro de Walter Burkert, "Ancient mystery cults". Mas, antes de começar a explicar o tema, vamos primeiro desfazer alguns estereótipos e 'pré-conceitos' sobre os cultos de mistério: 1) "Os cultos de mistério são tardios, do final do período helenístico ou período imperial, conduzindo à Idade Média" - Não, os Mistérios de Eleusis, por exemplo, floresceram por volta do século VI AEC em diante. O culto à Magna Mater desde o período arcaico, o culto de Ísis em Roma era no século I EC, o culto mitraico no século II EC, e por aí vai. 2) "Os cultos de mistério têm origem e estilo oriental, é como uma espiritualidade oriental numa forma helenizada" - Não, ainda que a Magna Mater fosse a deusa frígia Cibele e Ísis fosse egípcia e Mitra iraniano, eles refletiam o culto de mistério que já existia em Eleusis e nos mistérios de Dioniso. Além disso, a Anatólia, o Egito e o Irã antigos eram mundos separados, não eram exatamente 'orientais'. 3) "Os cultos de mistério é uma busca pagã por uma espiritualidade mais elevada, que teria levado ao cristianismo" - Não, apesar de o cristianismo ter assimilado muito do paganismo e do pensamento platônico, não se pode dizer que os cultos de mistério eram algo predestinado a virar cristianismo, pois há diferenças radicais entre os dois sistemas. 4) "Os cultos de mistério são uma espécie de rito de passagem realizado num ambiente noturno" - Não, os mistérios antigos não eram ritos de puberdade em nível tribal, sua admissão não dependia de idade ou sexo ou classe, não havia mudança externa visível (só interiormente, na relação do iniciado com as deidades), podiam ser feitos repetidas vezes, e não eram obrigatórios (era escolha pessoal, não algo prescrito pela família ou pela tribo ou clã). 5) "Podemos falar em 'religiões' de mistério" - Nem sempre, pois os mistérios eram uma forma especial (e opcional) de culto, oferecido dentro do contexto maior da prática religiosa. É semelhante a falar sobre a peregrinação para Santiago de Compostela dentro do sistema cristão (não uma religião à parte). Portanto, "religião de mistério", como um sistema fechado, não seria um termo adequado. Porém, se você considerar "religião" como uma forma pessoal de culto, aí sim cabe falar dessa forma. De onde vêm os cultos de mistério? Os mistérios eram uma forma pessoal de culto, cujo pano de fundo é constituído pelas religiões "votivas" (a prática de fazer votos), algo que é tão comum que pouco se fala hoje em dia: fazer promessas de ofertas aos deuses em troca de seu auxílio em alguma questão. Cada objeto ofertado testemunha uma história pessoal, de ansiedade, esperança, prece, realização etc. Para a classe superior, o risco maior era a guerra, então se faziam votos para controlá-la; para a classe média, eram as incertezas nos negócios, os períodos de viagem maritma, os riscos no parto, e os sofrimentos recorrentes das doenças. Isso nos ajudava a lidar com as incertezas do futuro, a administrar o tempo através de um 'contrato', com a estrutura do "se... então...": Se a salvação da ansiedade e incômodo atuais ocorrer, se o sucesso ou lucro esperado for alcançado; então uma renúncia especial e definida seria feita, uma perda limitada em interesse de um ganho maior. Uma tendência à perpetuação também era presente, pois o mortal incluía na sua prece o pedido para que a deidade concedesse a ocasião para ele estabelecer outra vez o relacionamento ("me lembrarei de ti e de outra canção também"). Não raro, as inscrições votivas também se referiam a intervenções sobrenaturais na tomada de decisões, em sonhos, visões, ou ordens divinas, mencionando depois a experiência bem-sucedida. Mesmo que nem todos os pedidos fossem 'atendidos' sempre, o fato é que a religião votiva provinha ajuda ao dar esperanças, socializar ansiedades e sofrimentos, encorajar o indivíduo a tentar mais uma vez, fazê-lo encontrar interesse e apoio dos sacerdotes e companheiros de culto. O voto era feito em público, a oferta pela realização era feita em público, e muitos se beneficiavam do investimento. Mas, na religião votiva, "fé" (pistis) e "salvação" (soteira) não implicava em "conversão" no sentido cristão, ainda que um indivíduo pudesse mudar sua orientação e se voltar para um deus específico após ter seu pedido atendido por ele. Nesse caso, ele "incluía" a nova deidade, e não "substituía" a anterior, por isso não é uma "conversão". E a crença era de troca, não de uma "fé" em alguém que vai te ajudar sem você fazer nada além de acreditar.

A relevância de se falar em religião votiva para os cultos de mistério é tripla: 1) A prática pessoal nos mistérios, em motivação e função, era paralela à prática votiva, pois era como uma nova forma de buscar salvação (salvação aqui no sentido vivo de "âncora", de "salvar dos perigos", "salvar das águas turbulentas" etc, não no sentido de salvar da morte em um mundo posterior), de buscar um contato mais íntimo e pessoal com a deidade, visando uma mudança de mentalidade através da experiência do sagrado. 2) O aparecimento de novas formas de cultos de mistério com novos deuses é exatamente o que se esperaria como resultado dessas funções práticas. 3) A expansão das assim-chamadas 'religiões orientais de mistério' ocorreu primeiramente como forma de religião votiva, com os mistérios às vezes formando apenas um apêndice ao movimento geral. Os antigos cultos de mistérios não eram uniformes, havia diferenças importantes entre eles, com relação inclusive à sua organização social, mas nenhum se aproxima do modelo cristão de uma igreja ('ekklesia'), e muito menos se poderia falar de "religiões" separadas e autossuficientes. Ainda assim, de uma forma didática, podemos separá-los em três tipos principais de organização na prática dos mistérios: o praticante itinerante ou carismático; o clero pertencente/ligado a um santuário; e a associação de cultuadores na forma de um "clube" (o 'thiasos'). O primeiro, o itinerante carismático, possuía um estilo de vida mântico e místico. Tratava-se de um vidente e sacerdote andarilho, que lidava com purificações e iniciações. Nos papiros Derveni, ele é caracterizado como "aquele que torna sacra a habilidade" - um artesão da religião, ou seja, alguém que aprende o ofício de um mestre, de um 'pai' real ou espiritual, e depois trabalha sozinho, para seu próprio lucro, por sua conta e risco. Não havia o apoio de uma corporação ou de uma comunidade. Alguns exemplos seriam Apolônio de Tiana, Epimenides, e Empédocles. Nos antigos mistérios, o itinerante carismático era mais encontrado nos ritos de Dioniso e da Méter. Um documento antigo (210 AEC) dá ordens para que "aqueles que realizam iniciações para Dioniso no país" viajarem para a Alexandria para se registrarem e declararem "de quem eles receberam as coisas sagradas, até três gerações, e entregar o exemplar selado no hieros logos". Ou seja, eles deveriam saber quem era não só o seu "pai" espiritual, mas também o "avô" e o "bisavô". Quando Dioniso aparece disfarçado de um estranho da Lídia na casa de Penteu ("As Bacantes", de Eurípides), ele estaria oferecendo seu serviço de místico e executando milagres, dizendo ter recebido sua iniciação através de revelação direta do deus. No século III AEC, Mileto descreve que as mulheres que "realizam iniciações para Dioniso na cidade ou no interior" deveriam se reportar aos sacerdotes oficiais de Dioniso naquela cidade e pagar uma taxa. O culto à Méter Theon na Grécia também começou de uma forma similar, com especialistas itinerantes, conhecidos como 'metragyrtai' (mendigos da Mãe) que declaradamente se sustentavam com seu ofício sagrado. O segundo tipo, o clero de um santuário, era mais comum no Egito do que na Grécia, já que os santuários gregos não eram unidades econômicas independentes, eram mais algo ligado à pólis ou de propriedade familiar. Mas os oráculos do período arcaico e os santuários de Asclépio no período clássico se tornaram organizações bem sucedidas desse tipo. Os sacerdotes que oficiavam ali podiam ser claramente distinguidos como itinerante por terem uma estabilidade local e uma relativa segurança, mas ao mesmo tempo eles tinham que aceitar certa hierarquia. Havia santuários à Méter assim, como o de Pessinus, na Anatólia, onde existiam sacerdotes eunucos (os 'galloi'). Ser um dos 'galloi', além de ser um modo de vida reconhecido e lucrativo, fazia os indivíduos ficarem atados à sua deusa e a seu santuário para o resto da vida. Segundo os mitos contam, os Mistérios de Eleusis, na Grécia, só poderiam ser celebrados num lugar selecionado pela própria Deméter, caracterizando-o também como um culto ligado a um santuário específico. O termo 'adelphos' (irmão) era usado para aqueles que recebiam sua iniciação juntos, nem tanto em um sentido de afeto emocional (afinal, em Eleusis, centenas de milhares de pessoas eram iniciadas juntas), e sim mais no sentido de ser parte de uma espécie de clã. O terceiro tipo, que pode ser chamado de "clube", era o 'thiasos' ou simplesmente 'koinon' ("comum"), ou seja, uma associação, uma "comunidade". Os detalhes diferem, mas essencialmente eles eram a união de iguais em torno de um interesse comum. Os indivíduos permaneciam independentes, na sua família e pólis, mas contribuíam com seu interesse, seu tempo, sua influência, e parte de sua propriedade particular, para aquela causa em comum. Esse tipo de associação tem um status legal e um lugar para reuniões (normalmente uma propriedade comunitária), mas não havia hierarquia estável e nem um líder carismático. Os devotos se dedicavam ao deus e a seus amigos iniciados (os 'symmystai'), num apego mútuo entre eles, realizando atividades comuns, sacrifícios em conjunto, refeição cerimonial, e procissões - que deixavam claro quem fazia parte do grupo. Existiam vários 'thiasoi' a Dioniso, embora muitas vezes dependentes de um fundador ou presidente rico, ou ligado a uma casa, porque a competição ('Agon') era estimulada para promover a honra ('timé') entre os 'symmystai' de um 'thiasos', honra esta premiada principalmente com generosas contribuições financeiras. Também os egípcios, quando emigravam para outras terras, fundavam uma espécie de 'thiasos' grego, na forma de associações de 'sarapiastai', 'isiastai' e 'anubiastai' (iniciados nos mistérios de Sarapis, Ísis e Anúbis, respectivamente). Nos mistérios de Mitra, não encontramos nem itinerantes carismáticos, nem 'thiasos' públicos, nem templos com clero, pois tudo se centrava numa iniciação realizada por clubes secretos (algo semelhante aos maçons, com graus hierárquicos de iniciação) e num número limitado de participantes (cerca de vinte membros); mas, sendo "clubes", podemos incluí-los neste terceiro tipo. De qualquer forma, a unidade em todos esses grupos estava na ação e na experiência, e não na "fé" - no sentido de professar um Credo. O ritual não precisava de uma teologia explícita para ser efetivo. Mesmo que os órficos prescrevessem certo estilo de vida (como não ingerir ovos), que os mitraicos se identificassem com o seu deus, que os eleusinos evitassem comer o peixe salmonete, isso não era explicitado em nenhum tipo de Credo ou fórmula doutrinária. Eles também tinham a característica do segredo (afinal, eram Mistérios), então não tinham a intenção de propagar uma religião. Além disso, se um membro de um 'thiasos' quisesse deixar o grupo, ele poderia sair sem problemas, sem perda de identidade, sem medo de trauma, sem dramas e maldições. A ausência de demarcação religiosa e a consciência da identidade do grupo evitava qualquer fronteira rígida entre cultos distintos, assim como a ausência de qualquer conceito de heresia e de excomunhão. Os deuses não tinham ciúmes uns dos outros, eram mais como uma sociedade aberta. As pessoas podiam inclusive participar de vários cultos, como se sabe de uma sacerdotisa de Ísis que servia como 'iakchagogos' (a que conduzia a estátua de Iaco/Baco) no culto eleusino de Atenas e a filha de um sacerdote de Sarápis que atuava como 'kistophoros' (carregadora da cesta) a Dioniso. Isso não significava uma "conversão" tipo "queime tudo o que você cultuava antes", e sim um aprofundamento e extensão da sua natureza de devoção para uma nova intimidade com o divino/sagrado, tanto com aqueles com quem você já tinha familiaridade quanto com os que você passava a conhecer. As fontes literárias sobre os mistérios, por serem mistérios, são todas indiretas. Não se trata apenas de dizer que uma biblioteca específica sobre os mistérios nunca foi encontrada, porque na verdade ela nunca existiu. Os tipos de textos que restaram, dos quais se procura extrair alguma coisa sobre os mistérios, são principalmente três: escritos herméticos/gnósticos, papiros mágicos, e os romances gregos. Cada um tem seus próprios problemas em servirem como fonte. A interpretação dos romances como textos de mistérios é algo meio recente. Eles não raro introduzem cenas elaboradas de rituais religiosos, com descrições vívidas da religião antiga, mas é difícil saber se isso era só por efeito literário ou indicava um envolvimento mais profundo real, e também saber se tratava-se de um tema isolado ou de símbolos que pertenciam à estrutura do todo. Um dos romances que mais tinham uma dimensão religiosa, o "Etiópica" de Heliodoro, não centra propriamente nos mistérios, mas no culto de Hélio. Ou seja, os romances serviam pelos detalhes ilustrativos, mas não podiam ser usados independentemente como chave para os mistérios. No caso da literatura hermética/gnóstica, apesar de pré-cristã, ela não é pré-judaica, ela era ligada ao judaísmo helênico. O tratado de Poimandres que abre o Corpus Hermeticum, tem um "background" judaico-cristão. Nela, os elementos pagãos são modificados pelo filtro de um sistema religioso que difere radicalmente do ambiente dos mistérios pagãos antigos. O interesse nos papiros mágicos começou com um livro que contava dos mistérios de Mitra como se fosse uma viagem particular em busca de uma revelação oracular, e não um rito de mistério propriamente. Os livros mágicos encontrados no Egito praticamente não tem nenhuma relação com Eleusis ou Dioniso ou com a Magna Mater. Uma das grandes diferenças entre religião e magia aqui é que: enquanto os mistérios integravam o iniciado em um grupo, os magos "continuavam solitários entre seus sonhos de onipotência, almejando ao mesmo tempo finalidades práticas de conhecimento do futuro, posse de riquezas e concubinas" (Walter Burkert, Ancient Mystery Cults, pag.68). A cura ficava em segundo plano nos papiros mágicos, deixada para Asclépio ou para a medicina científica. Aristóteles uma vez disse que aqueles que passam pelos mistérios não deveriam "aprender" ('mathein'), mas sim "serem afetados", "experienciarem" ('pathein'). Ainda assim, existem alguns testemunhos sobre a "aprendizagem" ou "transmissão" preparatória que acontecia nos mistérios. A palavra/razão/discurso ('logos') tinha um importante papel a desempenhar, e a prescrição de "não contar" o que se via nos Mistérios acontecia porque a verbalização tinha um papel central nos procedimentos. Era como um "relato sagrado" ('hieros logos'). O estóico Crisipo considerava a transmissão do 'logos' sobre os deuses (ou seja, a "teologia") como sendo a essência da iniciação. Isso pode ser percebido também em Empédocles, Parmênides, e no discurso de Diotima em "O Banquete" de Platão. Porém, mesmo havendo a possibilidade de existirem livros ou arquivos, não existia uma biblioteca de teologia; afinal, o culto da Méter e os Mistérios Eleusinos eram mais como uma tradição familiar. O fato de existirem 'logoi' e até textos escritos nos mistérios, como em outros cultos pagãos, não significa que esses textos formassem a base de religião - do jeito que acontece com a bíblia, o torah e o alcorão no caso do cristianismo, judaísmo e islamismo, respectivamente. Conforme conta Platão em "Meno", quando Sócrates introduz a doutrina da metempsicose, ele finge ter aprendido isso de "homens e mulheres que são sábios sobre as coisas divinas", de "sacerdotes e sacerdotisas que zelam por serem capazes de dar um relato do que eles estão fazendo". Isso implica que existiam também sacerdotes e sacerdotisas que não zelavam pelo que faziam e simplesmente executavam suas manipulações sem nenhuma explicação, nenhum 'logos' a ser comunicado aos outros. Esse relato, no entanto, não era fixado pela tradição, e nunca se tornava um dogma; nem mesmo havia uma organização por trás para controlá-lo. No papiro de Derveni, há uma passagem em que o autor reclama de certos oficiantes dos mistérios privados que só tomavam dinheiro sem conduzir seus clientes ao conhecimento; clientes estes que eram tímidos e confusos demais até para fazer perguntas, e por isso que perdiam seu dinheiro e sua esperança de alcançar o conhecimento. Existiam também três tipos de 'logoi': mito, alegoria natural, e metafísica. Martin Nilsson, que costuma negligenciar a importância do mito para a religião, ao falar sobre Eleusis, admite que "o mito tinha um efeito pervasivo incomum na religião de Deméter". Mas o mesmo podemos dizer da Méter, de Dioniso, e de Ísis. No caso dos mistérios órficos de Dioniso, o mito mais relevante para eles é o do seu nascimento de Perséfone e seu massacre pelos Titãs. A maioria dos mitos ligados aos mistérios, aliás, é de um deus que passa por um 'sofrimento': Perséfone abduzida, Dioniso retalhado, Osíris morto; e depois um luto que termina com uma alegria do retorno: tochas brandindo pela retorno de Perséfone à sua mãe, o dia de júblio ('Hilária') no festival da Magna Mater, a festa pela alegria de Ísis ao reencontrar Osíris. Essa rota da catástrofe à salvação parece lembrar o iniciado para ser confiante, pois assim como o deus se salvou você também vai se livrar dos seus apuros. Mas cuidado para não confundir isso com ressurreição inspirada num ciclo agrário (como pensava Frazer), pois não há evidência de Átis ter ressuscitado, Osíris continua entre os mortos, Perséfone vai e volta todo ano... Ou seja, não há nada que explicite uma ressurreição, embora existam relatos de deuses que podiam morrer e voltar nos mitos não relacionados com os mistérios. Hércules sofreu, morreu, ascendeu ao Olimpo, mas não se criou um mistério de Héracles por isso. E nos Mistérios de Mitra não tem nenhum mito de um "deus que sofre". Plutarco dizia que os sofrimentos de Ísis, ao serem reencenados, deveriam ser uma lição de piedade/devoção e um consolo para homens e mulheres que se vissem em situação similar de sofrimento. O mito também comunicava uma experiência viva que era reencenada: se Deméter jejuou de tristeza no mito, o iniciado de Eleusis também se abstinha de comida até a primeira estrela ser vista no céu; se Deméter acendeu tochas nas chamas do Monte Etna, eles também carregavam tochas; se ela se sentou num banquinho e velou sua cabeça, mantendo o silêncio e depois rindo e provando do kykeon, eles também o faziam. Os seguidores de Ísis a imitavam batendo no peito e pranteando Osíris, pra depois comemorarem quando ele era encontrado novamente. Os castrados da Méter também personificavam Átis e, uma vez que acreditava-se que Átis tivesse morrido debaixo de um pinheiro, essa árvore era levada ao santuário com fitas penduradas em seus galhos para representar as ataduras com as quais a Méter tentou estancar o sangue de Átis, e ela o enfeitou com flores primaveris, como as flores que se penduravam nas árvores. Nos mistérios de Dioniso, os iniciados usavam guirlandas de álamo preto porque acreditava-se que essa árvore crescia no mundo inferior, lar do Dioniso Ctônico. Quando Platão fala da amizade que surge entre os companheiros de iniciação nos mistérios, esse tipo de comunidade é chamada de "parentesco de almas e corpos" ('syngeneia psychon kai somaton'). A alegoria normalmente era considerada uma espécie de raciocínio sofístico, um exercício de retórica, em vez de um genuíno sentimento ou perspectiva religiosos, mas existem dois caminhos na elaboração de uma alegoria: há a conceituação abstrata vestida com uma roupa quase-mística de um lado, e há um relato tradicional que é parcialmente decodificado com referência a um sistema mais racional de pensamento. Na verdade, é a visão de mundo pré-socrática, centrada na Natureza ('physis'), e refinada (embora não alterada) pelos estóicos, que vem a ser o sistema de referência para a alegoria grega. Na era helênica, a alegoria era inclusive normalmente chamada de "mística". Os seguidores de Heráclito acreditavam que "a natureza deseja ser ocultada", se referindo aos segredos dos mistérios. A alegoria, portanto, era mais necessária nos mistérios do que em cultos menos secretos. Se a natureza era "misteriosa", então toda alegoria feita em um contexto religioso poderia ser chamada de "mística". Se tentarmos focar não no uso retórico das metáforas e sim no próprio fenômeno refletido em seu uso/aplicação, podemos fazer duas observações: primeiro, ao alegorizar os mistérios em termos de natureza, os sacerdotes e sacerdotisas poderiam dar um relato do que estavam fazendo. Por exemplo: em Eleusis, poderia-se reconhecer Deméter como a Mãe Terra e Perséfone como um grão que é levado para baixo da terra e retorna de uma maneira cíclica a cada ano; no Egito, Osíris estava ligado ao Nilo e Ísis à Terra; as iconografias mostram Mitra como um sol; nos mistérios da Magna Mater, os 'galloi' se cortavam para representar as feridas causadas na terra pelo arado - ou seja, esse aparente "ato de loucura" tinha uma explicação alegórica. Foi assim que a alegoria abriu caminho para a liturgia (do grego λειτουργία, "serviço/trabalho público"). No caso da metafísica, ela seria um nível mais elevado de interpretação. Aqui, acreditava-se que os princípios do universo não poderiam ser incorporados; ou seja, nem a terra nem a água poderia ser divinas por si só, e sim seriam permeadas por potências superiores. Os princípios de criação e união e os de dispersão e aniquilação trabalhariam juntos na matéria, a qual receberia seus impactos. Assim, os eleusinos estariam menos preocupados com o destino de Kore (mito) e a semeadura do grão (alegoria) do que com alguns procedimentos do hierofante no grande festival noturno. O estranho fenômeno da castração nos cultos à Méter não era só por conta do debulhar (mito) ou do cortar da terra (alegoria), mas trazia uma fascínio mais sublime relacionado à evolução do ser transcendente: o iniciado não pode mais gerar porque ele já chegou ao seu ápice em termos de procriação e agora precisa se estabilizar da forma mais segura possível para poder voltar às suas origens - além de representar uma tentativa de deter o fluxo de mudanças que conduziria a uma transformação do mundo a algo não mais ligado à natureza. Uma característica primordial dos mistérios é o 'makarismos', a exaltação do estado abençoado daqueles que "viram" os mistérios. Essas "testemunhas oculares" eram chamadas de 'epoptai'. Os festivais de mistério devem ter sido eventos inesquecíveis, daqueles que proporcionam experiências que mudam nossa existência e influenciam toda uma vida futura. O efeito esperado era de que algo estivesse prestes a acontecer na alma, como um encontro com o divino. Psicologicamente falando, era uma experiência de mudança de consciência, bem diferente de algo que se encontraria na vida cotidiana. Nesta postagem, veremos algumas afirmações dos antigos sobre os mistérios. Aristóteles dizia que no estágio final dos mistérios, não haveria mais "aprendizagem" ('mathein') e sim "experiência" ('pathein') e uma mudança no estado mental ('diatethenai'). Um prato dourado de Thurii trazia as palavras "fique feliz de ter sofrido o sofrimento que você nunca sofreu antes". Aelius Aristides diz que Eleusis era tanto a experiência mais assustadora quanto a mais resplandecente entre tudo o que é divino para o ser humano. Dio de Prusa foi ainda mais explícito: "Se alguém trouxesse um homem, grego ou bárbaro, para ser iniciado em um retiro místico, sobrepujado por sua beleza e tamanho, de forma que ele presenciasse muitas visões e ouvisse muitos sons do tipo, com escuridão e luz aparecendo em repentinas mudanças e outras coisas inumeráveis acontecendo; e mesmo - como fazem na chamada cerimônia de entronização ['thronismos'], nas quais os iniciandos se sentam e os outros dançam em torno deles - se tudo isso estivesse acontecendo, seria possível que tal homem não conseguisse experimentar simplesmente nada em sua alma, que ele não viesse a conjeturar que há algum plano e percepção mais sábios em tudo aquilo que estava acontecendo, mesmo tendo ele vindo da mais extrema barbárie?" O filósofo estoico Cleanthes fazia essa comparação do cosmo conhecido (a dança das estrelas e do sol em torno da terra) com um salão de mistério. Sopatros, numa descrição retórica da experiência de Eleusis, disse que saiu do salão dos mistérios sentindo-se um estranho a si mesmo. Marco Aurélio colocava os mistérios numa categoria entre as visões oníricas e as curas miraculosas. Dio Crisóstomo descreve os estranhos aos portões do salão como servos dos mistérios, os quais, do lado de fora das portas, adornavam os pórticos e os altares públicos, mas que nunca entravam; eles ainda percebiam algumas das coisas acontecendo lá dentro, seja uma palavra mística que alguém gritava, seja o fogo que era visto sobre os muros, mas eles continuavam sendo servos, e não "iniciados" ('mystai'). Diz-se que Diágoras de Melos teria contado pelas ruas segredos dos mistérios, assim como um escritor gnóstico naasseno da "seita da serpente" teria exposto segredos. Assim, temos dois lampejos da celebração: "os atenienses, celebrando os mistérios Eleusinos, mostram aos 'epoptai' o grande, admirável e mais perfeito segredo epóptico, em silêncio, uma espiga de milho ceifada" e "O hierofante, na noite em Eleusis, celebrando os grandes e inexprimíveis mistérios ao pé de um grande fogo, gritando que A Senhora deu à luz um filho sagrado, Brimo gerou Brimos". Plutarco tenta descrever o presumido processo de morte em termos de uma iniciação nos mistérios. Ele diz que, no momento da morte, "a alma sofre uma experiência similar a aqueles que celebram grandes iniciações... Perambulações errantes no começo, cansativas caminhadas em círculos, alguns caminhos aterrorizantes na escuridão que não levam a lugar nenhum; e então, imediatamente antes do fim, todas as terríveis coisas, pânico e tremedeiras e suor, e assombro. E então alguma luz maravilhosa vem te encontrar, regiões puras e prados estão lá para te saudar, com sons e danças e solenidades, palavras sagradas e visões sacras; e ali o iniciado, agora perfeito, se liberta e se solta de toda servidão, caminha em torno, coroado com uma grinalda, celebrando o festival unto com as outras pessoas sagradas e puras, e ele olha para baixo, para os não-iniciados, para a multidão não-purificada neste mundo, em lama e névoa debaixo de seus pés". Um dos textos mais influentes sobre a experiência dos mistérios aparece no "Fedro" de Platão. Já em "O Banquete", quando Eros revela sobre o verdadeiro Ser, diferenciando a "iniciação preliminar" ('myein') e os "mistérios perfeitos e epópticos", ele provavelmente estava se referindo a Eleusis. Em Fedro, Platão acrescenta a imagem inesquecível da carruagem da alma subindo até o céu no despertar dos deuses, para cima do mais alto cume, onde uma visão além do céu é possível. Alguma memória turva dessa visão permanece em certas almas, ressurgindo repentinamente através de algumas imagens de beleza encontradas neste mundo. Quando isso acontece, nos lembramos do quão resplandecente era a beleza que vimos, quando estávamos juntos com o coro abençoado, tendo uma alegre visão, celebrando o encontro na iniciação mais abençoada de todas, como 'mystai' e 'epoptai', felizes aparições de puro esplendor, totalmente purificados. O único relato de experiência com os mistérios escrito em primeira pessoa foi o da iniciação a Ísis, feito por Apuleio, em "Metamorfoses". Porém, além de ser um texto de ficção, em um estilo meio de romance paródico, ele é figurativo e jocosamente insinuativo, com a clara intenção de frustrar nossa curiosidade. Eis a introdução de uma das partes mais citadas: "Eu me aproximei da fronteira da morte, eu coloquei os pés na trincheira de Perséfone, eu passei por uma jornada através de todos os elementos e voltei. Eu vi à meia-noite o sol, brilhando em luz branca, eu me aproximei dos deuses do mundo superior e inferior, e os adorei de perto." O poeta Mesomedes, em seu Hino a Ísis, se refere a um "casamento subterrâneo" e ao "nascimento de plantas" - o que nos lembra Perséfone - e a "os desejos de Afrodite, o nascimento de uma criança, o perfeito e inenarrável fogo, os Curetes de Reia, a ceifa de Cronos, o auriga - tudo isso sendo dançado para Ísis". O nascimento da criança e o grande fogo, a colheita do grão, e o auriga Triptolemo, claramente são cenários eleusinos. Mas claro que esse resumo mítico não substitui a experiência. A "senha" ('synthema') para os Mistérios de Eleusis, que conhecemos por transmissão de Clemente de Alexandria, era algo intencionalmente enigmático: "eu jejuei, eu bebi do 'kykeon', eu tirei do cesto coberto ['kiste'], eu trabalhei e coloquei de volta no cesto alto ['kalathos'], e dali para dentro de outro cesto ['kiste']". O que significa esse "trabalhar" é incerto, mas a explicação mais plausível vem de Teofrasto, sobre pilar o grão, como se o iniciado tivesse que triturar um pouco de grão em um pilão. O simbolismo desse ato é que continua obscuro. Clemente também fala que, nos mistérios da Méter, o 'synthema' era parecido, mas se referia a instrumentos musicais: "Eu comi do 'tympanon' [tambor/pandeiro], eu bebi do 'cymbalon' [címbalo/pratos], eu carreguei o 'kernos' [vasilha] da mistura, eu deslizei sob o 'pastos' [pálio/dossel]" ou, em outra versão, "eu me tornei um 'mystes' [iniciado] de Átis". Aqui o pálio/dossel (cortina da cama) provavelmente é uma alusão a casamento. Ainda nos mistérios da Magna Mater, o famoso 'taurobolium' é na verdade descrito por autores cristãos: o iniciando, agachado em um poço, é inundado com litros de sangue do touro agonizando acima dele. Ainda assim, se a descrição era mesmo fiel, esse emergir do poço e ser "adorado" pelos outros, como se o iniciado tivesse alcançado um estado superior, certamente provocava um sentimento de liberação e de nova vida, após escapar do horror anterior. Os mistérios de Mitra são quase sempre algo à parte. Para começar, não havia uma única iniciação, mas sete graus de iniciados: o corvo, a crisálida, o soldado, o leão, o persa, o corredor-do-sol, e o pai. Respectivamente: 'korax/corvus', 'nymphus', 'stratiotes/miles', 'leo', 'Persa', 'heliodromus', 'pater'. Então fica mais complicado falar do culto mitraico aqui. Um testemunho relacionado com iniciações dionisíacas enfatiza a purificação e a mudança de status ou até de identidade. No discurso de Demóstenes contra Ésquines, encontramos relatos sobre uma cerimônia noturna a qual incluía colocar uma pele de gamo/cervo e encher um 'krater' (jarra em forma de taça) com vinho. Ali, os iniciandos, sentados, são então lambuzados com uma mistura de barro e resíduos de cereais; o sacerdote surge da escuridão como se fosse um espírito aterrorizante; os iniciados são limpos e se erguem de pé, exclamando "eu escapei do mal, eu encontrei algo melhor", e os presentes gritavam em uma voz aguda e alta ('ololyge') como se estivessem na presença de algum agente divino. Na manhã seguinte, os iniciados eram integrados ao grupo de celebrantes, com o 'thiasos' se movendo pelas ruas, pessoas coroadas com funcho (erva-doce) e álamo/choupo branco, dançando e pronunciando gritos rítmicos, carregando o 'kiste' (cesto) e o 'liknon' (peneira), e alguns brandindo serpentes vivas. O terror teria se tornado algo administrável para o iniciado. Há uma interessante iconografia referente às iniciações a Dioniso, a começar pelo famoso afresco da Vila dos Mistérios em Pompeia (vide imagem abaixo) e os relevos da Vila Farnesina em Roma, e passando por relevos arquitetônicos, cenas em sarcófagos, e um mosaico na Algéria que enfeitava um aposento de culto. O item mais intrigante dessas imagens é um imenso falo ereto em uma peneira ('liknon'), coberto por um pano, sendo desvelado ou por uma mulher ajoelhada ou por um sileno em frente de um rapaz que avança. [De uma forma geral, procissões com falo sempre estiveram presentes no culto a Dioniso. Mas um falo não era um segredo maior do que uma espiga de grãos; o mistério não estava no objeto.] O friso da Vila segue uma sequência: começa com uma mulher entrando pela esquerda e prosseguindo até a purificação, um breve idílo de vida satírica, a revelação misteriosa do deus no centro do mural, duas manifestações principais de Dioniso (sátiros manipulando uma tigela prateada e uma máscara, e uma garota desvelando o falo), depois uma cena de flagelação e uma dança frenética (indicando uma espécie de humilhação e a alegria/êxtase final). Enfim, existia um paradoxo dinâmico de morte e vida nos mistérios, associado com os opostos de noite e dia, escuridão e luz, abaixo e acima, mas nada explicitamente parecido com uma "ressurreição" semelhante aos evangelhos cristãos. Burkert ressalta que, mesmo havendo purificação e aspersão de água, no paganismo não existiria um "batismo" no sentido de imersão em um rio ou bacia para renascer para uma nova vida. Mesmo nos santuários de Ísis, onde havia um receptáculo de água, o que poderia parecer uma referência ao batismo, o que existia mesmo era o uso dessa água para representar a enchente do Nilo. Lembrem que o helenismo não pertence a um mundo de opostos do tipo "bem x mal", um vencendo o outro, e sim de uma busca pelo equilíbrio, pela justa medida, pois é no 'métron' que reside a virtude. Três questões continuam sendo perguntadas sobre os mistérios: se havia torturas, se havia sexo nas "orgias", e se havia o uso de drogas. As tentativas de responder a elas vão novamente variar dependendo de cada mistério (Eleusis, Dioniso, Mitra, Magna Mater, Ísis etc). 1. DOR? Vamos começar pela dor. Aqui teremos que separar os mistérios de Mitra de todos os outros. Pra começar, lembremos que não é incomum vermos pessoas sendo humilhadas e machucadas nas iniciações, desde os aborígenes australianos até os calouros de universidades de hoje. Existem testemunhos sobre os mistérios de Mitra sobre "50 dias de jejum, 2 dias de açoites, 20 dias na neve", mas isso parece estranho, até por que é difícil imaginar neve na África. Outro relato (reproduzido em afrescos) dizia que os candidatos eram vendados e ouviam o som de corvos e leões, e os de maior grau de iniciação tinham as mãos amarradas com tripas de galinha e jogados numa bacia de água onde um homem cortava as amarras e se dizia o "libertador". E encontramos ainda outras formas que pareciam um zombar da morte. Ou seja, os mistérios mitraicos se pareciam muito mais com uma iniciação dolorosa do tipo de que conhecemos do que os outros mistérios antigos. Nos outros mistérios, as experiências de humilhação e dor desse tipo parecem estar visivelmente ausentes. Em seu lugar, existia a "purificação". Mas, mesmo assim, havia certo terror psicológico, como vemos Plutarco dizer sobre "todas aquelas terríveis coisas, pânico e tremores e suor". De acordo com Prudêncio, os devotos da Magna Mater recebiam uma tatuagem no corpo, queimada na pele com agulhas quentes. No reino de Ptolomeu IV Filopator, havia uma prática parecida nos mistérios de Dioniso, com tatuagens de lírios, tímpanos (tambores) ou coroas de hera; mas isso parecia um caso excepcional. Na imagem que vimos na postagem anterior, da Vila dos Mistérios, há uma moça ajoelhada com a cabeça no colo de uma mulher sentada e de olhos fechados, enquanto uma figura feminina sinistra ergue uma vara, o que poderia sugerir açoite; mas a figura ameaçadora tem asas negras, ou seja, ela não é deste mundo, é mais uma personagem alegórica. Nas peças dionisíacas, a 'mania'/loucura é comparada a um açoite (de novo, figurativamente). Horácio sugere que nem mesmo Afrodite abriria mão de um "sublime flagellum" para colocar uma garota arrogante no seu devido lugar. Ou seja, a flagelação era puro simbolismo, como uma metáfora para a possessão da loucura divina, tanto que - no mesmo afresco da Vila dos Mistérios - a garota depois se levanta transformada em uma verdadeira bacante, dançando freneticamente junto a outra dançarina na cena seguinte. Pode-se até pensar na flagelação real como uma forma de catarse/purificação, mas ainda assim - se acontecia ou não nos mistérios - a arte consegue deixar isso intencionalmente ambíguo. 2. SEXO? Como já vimos, o uso moderno da palavra "orgia" reflete as piores suspeitas puritanas com relação aos ritos noturnos secretos. Certo, havia a presença de um Príapo Itífalo em quase todos os mistérios, mas isso era mais em um caráter jocoso, de brincadeira e risadas, e dificilmente tinha a ver com a questão central dos mistérios. As procissões com um falo gigante aconteciam mais nos festivais a Dioniso do que nos mistérios. Nas iniciações da puberdade, é claro que o encontro com a sexualidade é normal e necessário. O encontro com o falo desvelado, que aparece nas cenas de iniciação, pode ser interpretado como uma preparação para o casamento ou uma forma de Matronalia romana (festival a Juno Lucina como deusa do parto, da maternidade e das mulheres). Os vasos apulios de uso funerário, do quarto século, relacionados aos mistérios de Dioniso, normalmente retratavam o encontro de um macho e uma fêmea num ambiente báquico, e são uma iconografia que se acredita referir-se a uma "escatogamia" (um casamento num mundo futuro) nos Campos Elísios, a felicidade final no além, como se os festivais dos iniciados continuassem acontecendo depois da morte. Ou seja, o que encontramos é mais simbolismo - simbolismo sexual, claro, mas de uma forma que não violasse a integridade do corpo dos participantes e nem de suas fantasias, mesmo quando havia uma resposta emocional ao falo exposto no 'liknon'. Era o simbolismo que moldava as formas do ritual, e não as orgias de verdade (no seu sentido moderno). Nos mistérios de Sabazius, uma serpente de metal passava pelas roupas dos iniciandos. Era o "deus pelo colo" ('Theos dia kolpou'), uma forma de união sexual com o deus, lembrando de como Perséfone teria sido impregnada por Zeus na forma de uma serpente, e supostamente também Olímpia sendo impregnada por Dioniso e gerando Alexandre o Grande. Mas, mesmo aqui, a sexualidade em si não era o segredo do mistério. Os mistérios de Eleusis, por sua vez, eram conhecidos por sua "pureza". Não havia simbolismo fálico, e - se existiu algo sexual no contexto das cerimônias noturnas - o segredo foi bem guardado. Sobre os mistérios de Eros, praticamente só temos "O Banquete", de Platão. Era como se um amante propusesse ao outro iniciação aos mistérios desse deus em especial. Nos mistérios mitraicos, a virilidade de guerra era mais importante do que a intimidade sexual, afinal, dizem que Mitra odeia mulheres (Pseudo-Plutarco, 'De fluviis' 23, 507: "Mitra, desejoso em ter um filho, ainda que odiasse as mulheres, se deita com uma pedra"). A castração nos mistérios da Méter tem um caráter interessante: de certa forma, através de sua negação radical, a sexualidade aqui se torna algo até mais obsessivo do que nos outros mistérios. Isso nos lembra da cortina no leito matrimonial que aparece nos mistérios de Átis. No culto de Ísis, não há símbolos sexuais evidentes. As cabeças raspadas, as roupas de linho, as procissões, preces, água, incenso, sistro (instrumento musical sagrado), tudo parece muito austero e puritano, mesmo que a água do Nilo lembre fertilidade. Ainda assim, o culto de Ísis influenciou não apenas as 'hetairas', mas há o relato de uma romana chamada Paulina, indo ao templo de Ísis para dormir com o deus Anúbis, que a teria chamado. Ele, na verdade, era um romano usando uma máscara de chacal. Esse escândalo fez o imperador Tibério banir as sacerdotisas de Ísis de Roma. No entanto, a abstinência sexual que existia como preparação para as cerimônias de Ísis, nos chama a atenção. Provavelmente havia, no centro do mistério, algum casamento sagrado correspondente ao mito de Osíris. A abstinência, aliás, era um pré-requisito normal para participar em praticamente todos os mistérios e em alguns outros cultos (Ovídio fala da abstinência no mistério de Dioniso, Marinus fala da abstinência no da Méter e de Ísis, Burkert cita o uso de um veneno que o hierofante de Eleusis usaria para uma "castração" química temporária). Isso estimularia as expectativas e aumentaria nosso nível de atenção a certos sinais. A sexualidade era mais um meio de representar uma quebra na rotina (como os próprios mistérios o eram) do que um fim em si mesma. 3. DROGAS? O uso de drogas nos contextos religiosos é um estudo mais recente. Algumas pessoas acham até que não existiam mistérios sem drogas, por elas serem a forma mais fácil de ter uma experiência incomum. Kerényi chegou a pensar que o ingrediente do 'kykeon' bebido em Eleusis (o poejo, 'glechon') fosse levemente alucinogênico, e a turma de Wasson (Wasson, Hofmann e Ruck: "The Road to Eleusis") acha que o que estava na bebida de Eleusis era o ergot, um fungo que crescia no grão de centeio. Entre os constituintes solúveis em água dessa ergotina, estariam alguns traços de LSD. Mas, mesmo que os grãos de Eleusis fossem infectados por tal peste, a gente precisaria imaginar qual a quantidade necessária para milhares de participantes (que era o número em cada iniciação eleusina) terem visões felizes, ainda mais que os relatos de experiência com envenenamento por ergotina são mais de algo desprazeroso do que de estados eufóricos. Outra hipótese seria o ópio por conta das papoulas também serem uma planta atribuída a Deméter. Ovídio tem uma representação de Deméter colocando a criança eleusina (Triptólemo) para dormir com um suco de papoula. Mas nesse caso também continuamos com a dúvida de como eles conseguiriam ópio numa quantidade tão grande para milhares de iniciados que nem sequer eram fumantes. Quanto ao álcool, éclaro que o 'krater' com vinho estava no centro da maioria dos cultos báquicos, mas a inebriação pelo vinho podia ser tanto "liberação" (com Dioniso Lysios) quanto "loucura" em um sentido de punição por um deus (Dioniso Bakcheios), como Platão indica nas suas Leis. O vinho em si não é suficiente para induzir ao êxtase divino. Em Eurípides, vemos que "muitos são os portadores do tirso, mas poucos os iniciados" - muitos podem ficar bêbados, mas nem todos são bacantes. Além disso, as drogas muitas vezes levam mais ao isolamento do que criam um senso de comunidade; e todos os mistérios enfatizavam mais uma alegria em comunidade, incluindo banquetes onde compartilhavam opulentas refeições. Os servos da Méter, os 'galloi', eram proibidos de comer cereais, mas podiam comer a carne dos sacrifícios, tendo grandes banquetes. Nos cultos a Ísis e Sarapis, o jantar ('deipna') está entre os fatos mais certos: os participantes se reuniam em uma casa ('oikos') e reclinavam-se em sofás ('klinai'), se preparando para comer e beber. Nas escavações relacionadas a Mitra, encontraram restos de ossos animais de várias espécies perto dos sofás, mostrando que eles não eram usados só para posições de preces, mas para refeições. Mitra e Hélio banqueteam-se juntos nas iconografias mitraicas, enquanto os iniciados de graus menores (do Corvo ao Leão) servem a mesa. Novamente, os grandes banquetes eram uma quebra na parcimônia da vida cotidiana. Beber do 'kykeon', que era uma espécie de sopa de cevada, era um evento importante nos mistérios Eleusinos, ele marcava o fim do jejum. Nos mistérios báquicos, a felicidade ('makaria') era apresentada ao iniciado na forma de um bolo. No culto a Asclépio, a saúde poderia ser ingerida, na forma da deusa Higeia. A alteração no estado de consciência através do êxtase era mais presente nos mistérios de Dioniso e da Méter. No primeiro, pela loucura divina, no segundo porque os devotos da deusa frígia eram 'entheoi' ou 'theophoretoi' (carregados pela divindade) sob o efeito de certos tipos de música. Temos inclusive uma descrição clínica do êxtase no culto da Méter, na qual o doutor relata que os 'galloi' "se animam ao som da flauta e da alegria no coração ['thymedie'], ou pela bebida, ou pela incitação dos presentes", e ele fala também do efeito catártico disso, "essa loucura é possessão divina; quando eles terminam o estado de loucura, eles estão com boa disposição, livres de tristezas, como se estivessem consagrados ao deus". A catarse nos mistérios de Dioniso é relatada pelo musicólogo Aristides Quintilianus: "este é o propósito da iniciação báquica, que a ansiedade depressiva ['ptoiesis'] das pessoas menos educadas, produzida por seu estado de vida ou por algum infortúnio, seja lavada através de melodias e danças do ritual de uma forma alegre e divertida". Então, parecia com uma terapia. Tito Lívio também falou do êxtase na bacanália, dizendo que era simplesmente a falta de sono, e o vinho, e os sons musicais e gritos pela noite, que deixava as pessoas atordoadas/embriagadas. Nos mistérios de Eleusis, de Ísis, e de Mitra, parece não ter existido um êxtase desse tipo. Vamos terminar com o que Proclus escreveu sobre os mistérios: "Eles causam simpatia das almas com o ritual, de uma forma que é incompreensível a nós, e divina, de forma que alguns dos iniciandos são tomados por pânico, sendo preenchidos com um divino assombro; outros assimilam a si mesmos com os símbolos sagrados, deixando sua própria identidade, se sentindo em casa com os deuses, e experimentam uma possessão divina." Essa simpatia ('sympatheia') das almas com os rituais é como uma forma de ressonância que sacudia os alicerces da realidade, nos trazendo uma transformação. Não sabemos o que acontecia nos rituais, e muito menos conseguiríamos reproduzi-los, não podemos recriar tal experiência, mas podemos reconhecer que ela existia como uma chance de unir a alma do iniciando à da comunidade, em um sentimento de felicidade e união com o sagrado.

Enfim, era mais o senso de comunidade, os banquetes, as músicas e danças, o efeito do jejum e da falta de sono, o assombro com o desconhecido, entre outras coisas semelhantes, que causava sensações diversas e experiências extáticas fora do comum. Provavelmente, a ideia de torturas, orgias sexuais e drogas, surgiu apenas da falta de conhecimento e de preconceitos mais modernos com relação ao "mistério nos mistérios". Por não sabermos como era, tudo acaba sendo possível de se conjeturar. Mas quase nada pode ser definitivamente afirmado. #deuses #greciaantiga #helenismo #mitologia #rituais #crenças #gregos #misterios #livro

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