(texto de 11 de julho de 2011, por Alexandra)
Antes de entrar no assunto da postagem propriamente dito, preciso conduzir vocês a algumas lembranças dionisíacas... Eis:
No começo parece um descanso, uma libertação (alguns dos epítetos de libertador dEle são Lísios, Liaios, Catársios). Seu corpo parece simplesmente um receptor de sensações. Sua alma está desprendida, alerta e sem senso de tempo, vivendo a eternidade em uma noite, vendo o infinito em coisas minuscularmente limitadas. Você se sente em êxtase. Para os gregos, "ekstasis" era quando a alma voava para fora do corpo. Para quem nunca experimentou esse tipo de êxtase, ele parece o máximo, legal, divertido, algo que a gente deveria tentar sempre que possível. Mas deixa eu te dizer: o êxtase dionisíaco não é uma coisa divertida. Sua alma é retalhada e chacoalhada até 'formigar', diluída no assombro do desconhecido. E, no dia seguinte, você volta à rotina sem ninguém notar nada, só você se lembra da noite que passou. E desejando ter alguém com quem compartilhar as sensações que teve, principalmente se for alguém que também 'esteve lá', em uma troca de maravilhamentos.
Tudo isso eu já comentei no meu blog do Sofá, mas era necessário dar essa introdução relembrando essa questão, agora que pretendo falar sobre um aspecto de Dioniso ligado a visões e relacionado aos Mistérios de Eleusis. Aristóteles dizia que os mistérios eleusinos contavam com que o iniciado sofresse, sentisse, experimentasse, certas impressões e humores. Apesar de ser um mistério, uma das coisas que vários escritores antigos indicam - e que não era proibido contar - é que em Eleusis algo era VISTO no "telesterion" (salão de iniciação do santuário). A experiência incluía uma visão, a partir da qual o iniciado se tornava alguém que viu, um "epoptes" (επί - epi - sobre, em; οπτανομαι - optanomai - ver, fitar com os olhos bem abertos), uma espécie de testemunha ocular. Esse salão do templo não era adequado para apresentações teatrais, nem os registros marcavam a presença de atores ou material de palco no local. Ou seja, os iniciados não assistiam a uma peça, e sim presenciavam aparições. E tampouco tratava-se de truques; afinal, pessoas extremamente inteligentes como o poeta Píndaro e o dramaturgo Sófocles estiveram lá e confirmaram o sobrepujante valor daquilo que se era visto em Eleusis. Autores modernos acreditam que se tratava da própria Perséfone acompanhada pelo filho (Dioniso). Sendo ou não, o que se relatava era a existência de sintomas físicos acompanhando as visões, reações que não são típicas de uma audiência teatral ou cerimonial, e sim de uma visão mística:
"...medo, tremor nos membros, vertigem, náusea, e um suor frio. Então vinha a visão, uma aparição em meio a uma aura de luz brilhante que repentinamente tremeluzia através da câmara escurecida. Olhos nunca haviam visto antes tal coisa, e, além da proibição formal sobre se contar o que tinha acontecido, a experiência por si só era incomunicável, pois não havia palavras adequadas para descrevê-la." ("The Road to Eleusis - Unveiling the Secret of the Mysteries", 2008, por R.Gordon Wasson, Albert Hofmann e Carl A. P. Ruck, tradução minha.)
Estes dias ando lendo uma ficção sobre Kassandra (que, por sinal, é 'apelido' de Alexandra, Ale-ksandra), a de Tróia. As visões transcendendo espaço e tempo descritas pela autora do livro se assemelhavam bastante a algumas experiências que já vivi ou ouvi contar. Às vezes as pessoas pensam que reconstrucionistas são sérios e teóricos demais para viver coisas racionalmente inexplicáveis. Mas isso não é verdade. Ao menos não entre todos nós. E nem é algo exclusivo dos seguidores de Dioniso. Sequer é exclusivo da época do calendário onde se relembram os Mistérios. Não é algo que se programe na folhinha, só acontece. E não necessariamente tem a ver com práticas 'xamânicas', seja lá como se entenda/defina o xamanismo.
O que eu gostaria de desmitificar é a ideia de um helenismo sem emoção, sem arrebatamento. Basta lembrar as imagens representando o rapto de Perséfone e a ascensão de Psiquê, por exemplo. Há sim um transbordamento incapaz de ser contido no físico, uma elevação espiritual ao indescritível, um mistério extático que nos toma sem cerimônias. Mas, como foi no caso de Perséfone e Psiquê, é uma captura que pode te tornar uma rainha ctônica ou te elevar ao reino dos deuses.
Uma vez eu li de uma politeísta americana, a Nykti, que "Eles vão te levar a lugares que você não queria ir, e te fazer ver coisas que você nunca quis ver, mas não tenha medo, pois Eles estão lá com você, para o que der e vier." Portanto, não há o que temer quando o lugar tão desconhecido para onde somos levados foi providenciado por meios sagrados. Quando o aceitamos, mesmo tendo que sofrer separações (como Perséfone de sua mãe) e provas (como as árduas tarefas de Psiquê), a recompensa final é sempre por um propósito maior do que nós mesmos. Estaremos cumprindo ao que viemos e caminhando na direção de conhecermos quem verdadeiramente somos.
Se negarmos um ato dos Deuses por receio de parecer 'pouco helênico' e 'muito místico', aí sim estaremos desacreditando naquilo que Eles tanto nos mostram (visualmente e repetidamente) e deixando de experimentar todos os níveis de um pertencimento religioso. Negar seus dons é como recusar um presente, e - pior - desperdiçar a oportunidade de fazer deles algo útil ao crescimento da humanidade como um todo. Em suas preces, é aconselhável pedir que as deidades lhe ajudem a discernir o que vem delas, que lhe orientem ao melhor direcionamento das experiências vivificadoras nas quais lhe colocam, e de que forma vocês poderiam estabelecer a 'kharis' (reciprocidade, troca) do dom com a oferta do mesmo.
Se os iniciados são chamados em grego de "mystai", e eles eram "epoptes", então é perfeitamente concebível que as visões, os mistérios e as experiências místicas façam parte da vida 'religiosa' dos gregos.
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