(texto de 2008)
Referência: Gabriella Pironti, "Entre ciel et guerre: Figures d'Aphrodite en Grèce ancienne". Kernos Suppl. 18. Liège: Centre International d'Étude de la Religion Grecque Antique, 2007. 336 páginas. ISBN 978-2-9600717-1-9. £ 33,00 (brochura). - Comentado por Stephanie L. Budin, Universidade Rutgers, Camden, adaptado e traduzido pela Alexandra. "O amor é uma vadia." Esse é um clichê tão simpleszinho no mundo moderno que, talvez por mera força de negação, temos tendência a ignorar esse fato. Se já não fosse suficientemente irritante lidar com as nossas próprias vidas românticas, isso se torna especialmente problemático quando se trata de tentar desvendar antigas concepções de amor. É exatamente este problema que a Profª Gabriella Pironti aborda em sua dissertação de doutorado, que virou o livro "Entre ciel et guerre". Para ela, modernas compreensões de Afrodite são dificultadas pelas idéias modernas sobre o que é o amor. O amor é doce, o amor é gentil; o amor é (segundo alguma espantosamente divulgada cultura pop dos anos 70) nunca ter que pedir desculpas. Devido a esta construção moderna do amor romântico, a própria Afrodite se torna incompreendida em si mesma nos estudos da religião antiga. Ela é estereotipada como uma deusa especificamente feminina, envolvidas em questões de flerte, casamento, e ao que os trovadores medievais chamavam de 'Fin Amor'. Muito pelo contrário, Pironti alega que a 'timé' de Aphrodite abrange muito mais coisa, envolvendo a deusa nos reinos da política e até da guerra. Para provar a sua tese, Pironti toma uma posição radical em seu estudo de Afrodite: ela a apresenta como uma deusa associada com a violência, a dominação, e a guerra. "Essas nuanças escuras, guerreiras e políticas, contradizem a imagem pacífica da deusa e não têm recebido a atenção adequada, provavelmente por causa da contradição. É uma contribuição, portanto, requerer um conhecimento profundo e analisar atenciosamente (...) algumas dessas aparentemente paradoxais visões da figura de Afrodite, (...) nós decidimos estudar a relação que ela possui com o universo de Ares" (pag.13-14). O livro é composto de uma introdução, quatro capítulos e uma conclusão geral. O capítulo I fala de "Afrodite e a violência na Teogonia de Hesíodo". Pironti começa a sua análise da violência ser inerente a Afrodite ao examinar a natureza violenta do seu nascimento. Como argumenta, tanto à violência sexual e a união foram necessários para transformar o inicialmente amorfo Caos em realidade. Segue-se uma digressão onde Pironti considera o tema "O amor vence tudo" nas obras de Hesíodo e Homero. Aqui ela estabelece uma importante ligação entre sexo e violência na persona de Afrodite - a força irresistível do eros universal. "A violência que é o desejo de refeição sem dúvida vem desta lei cósmica que empurra os seres um contra o outro, arrancando-lhes a si mesmas por um aumento súbito e poder divino que não suporta nenhuma resistência: uma lei que, tanto em Hesíodo como em Homero, atua através de um desejo que visa misturar os corpos..." (p.47). Mesmo Zeus está sujeito ao seu poder, tanto no início do Hino Homérico V, quando no canto 14 da Ilíada. "Esta última expressão é análogo à aquela referência da mistura dos corpos em batalha. O verbo 'meignymi' diz respeito à guerra e à relação sexual: os guerreiros, como os amantes, se misturam" (p.52). O capítulo I termina com duas seções examinando as relações tanto com a Noite de Afrodite e sua descendência quanto com o próprio deus da guerra. Em ambos os casos, a autora alega que Afrodite era entendida como sendo não associada com a luz e à doçura, mas à escuridão, aos vingativos, e aos violentos. O capítulo II, "O universo sob o jugo: dos hinos à Afrodite ao mito da tartaruga," oferece uma ampla reflexão sobre o relacionamento de Afrodite com a umidade, e uma análise mais aprofundada do tema "O amor conquista/doma a todos". Aqui Pironti abandona a ordem cronológica da especificidade do capítulo anterior de considerar uma maior variedade de dados para Afrodite, estendendo-se dos primeiros poetas épicos até os comentaristas da era romana. O capítulo começa com um estudo do epíteto de Afrodite Ourania - com maior incidência na Afrodite como deusa da fertilidade do que como deusa da guerra, prefigurando estudos posteriores sobre as associações entre Afrodite e os humores corporais, bem como o papel da mistura (aqui entre terra e umidade) na persona de Afrodite. As próximas três seções do capítulo II - "A violência e a lei", "Urania, os casamentos, os desbravamentos" e "A esposa, presa de guerra" gira em torno de Eros e Afrodite no drama do século V de Atenas. O tema destas secções é o poder exercido pela violência e até mesmo Eros e Afrodite em sua dominação da humanidade. Pironti registra a imagem das duas divindades como tiranos em Sófocles e Eurípides, e os violentos destinos de quem rejeitá-las, tal como acontece às Danaides e a Hipólito. Com relação à apresentação de Eros em Hipólito e Antígona, a autora conclui que "o esquema formula peças fundamentais de articulação do pensamento religioso dos gregos, a saber, que aquele poder divino de Eros é algo violento e inevitável, assim como é a deusa" (p. 124). Em contrapartida, "A esposa" analisa o papel de Afrodite e o desejo na trágica história de Deianeira em 'As Traquínias', de Sófocles. Aqui, em vez de se concentrar sobre a relação óbvia entre a guerra e a luxúria na história de Iolaus, Pironti centra-se em Deianeira como um objeto de desejo violento, com a própria Afrodite como árbitra da batalha. Assim diz Pironti: "Afrodite encontra um lugar natural no meio da ARENA, onde se engaja na luta corpo-a-corpo e no desejo de mudar a dinâmica do impulso agressivo. Quando uma mulher está associada a uma prova de virilidade, Afrodite não fica à margem da Arena, ao lado dos homens que desejam conquistar, mas sim no meio, ao lado dos homens onde a masculinidade está em jogo, em conformidade com o seu aspecto guerreiro" (p. 141). O Capítulo II termina com uma reconsideração da tartaruga na iconografia de Afrodite. Em vez de aceitar o tradicional entendimento de que a tartaruga representa a esposa excepcionalmente domesticada que permanece dentro do espaço interno do lar, Pironti vê a ligação como a de uma sexualidade violenta. Citando autores romanos como Aelian e Plutarco, Pironti alega que, entre as tartarugas, as fêmeas da espécie são naturalmente contrárias ao sexo. Os machos, então, têm que estuprar as fêmeas, quer através de violência física ou drogas. A autora parece estar argumentando que a tartaruga é um emblema de Afrodite como uma deusa do estupro, a combinação de sexo e violência. O capítulo III, "A deusa do 'aphros' e a flor da juventude", é um estudo da soberania de Afrodite sobre os homens jovens e de suas sexualidades, virilidades e beligerâncias. O capítulo começa com um estudo do nome de Afrodite, não em termos de lingüística moderna, mas em termos de como os próprios gregos antigos teriam entendido a palavra. O foco é a 'aphros' elemento, e especificamente a relação da forma como Afrodite associa a umidade à fertilidade, com os fluidos vitais e o sêmen. Evidentemente, 'aphros' não é meramente umidade, mas uma 'espumosa umidade', o que leva a autora a tecer mais comentários sobre as associações de Afrodite com o fôlego e a ebulição, aspectos que ela compartilha com deidades como as Erínias, Lissa, Dionísio e Ares. Estas ligações completam o estreito relacionamento entre a Deusa e à maturação dos homens jovens, realmente guerreiros, que chegam com a idade de maturidade sexual e militares simultaneamente. As conexões entre os fluidos, a "ebulição" e a maturação sexual, em última instância, servirá para reforçar o relacionamento da Afrodite com Ares e do mundo de guerra. "Dado o fato de que Afrodite está em um relato que une a espuma com o esperma, e que não há uma verdadeira resolução de continuidade entre a virilidade sexual e o poder bélico, o casal que freqüentemente ela forma com Ares poderia ser explicando usando essa interseção maior entre os seus respectivos domínios". O capítulo III termina com dois pontos sobre o papel da Afrodite como guia e protetora dos jovens guerreiros. A seção 4 analisa a associação de Afrodite com as flores no que tange ao "florescer da juventude", especialmente em homens jovens. Isso mais uma vez traz uma volta ao tema da deusa Afrodite como deusa dos jovens guerreiros sexuais. Na seção 5, "Unida aos jovens rapazes," Pironti explora a presença de Afrodite na vida dos jovens e de heróis guerreiros tanto nos cultos quanto na literatura. Em ambos os casos, a autora mostra que Afrodite não é apenas responsável pela chegada dos jovens em idade de guerreiros, mas que ela também fica com eles nas fases iniciais da sua carreira militar. O capítulo IV, "Afrodite, Ares e o mundo da guerra", é o culminar da tese: Afrodite é uma deusa envolvida em assuntos militares e bélicos. O capítulo começa com um estudo do papel de Afrodite na própria Guerra Tróia e seu relacionamento com seus heróis. Para Pironti, o relacionamento de Afrodite com Páris manifesta a relação da deusa com os jovens guerreiros em geral - Paris é o herói que se adequada a um servo de Afrodite, prefere fazer amor a fazer guerra. Ela então chega à seção "Figuras da mistura: sobre Éris e Eros". O restante do capítulo IV explora mais um pouco o papel de Afrodite como deusa da guerra. A primeira e mais urgente questão a ser abordada é, naturalmente, "Por que uma Vênus armada?". A noção de uma Afrodite Armada começa e termina em Esparta, mas uma pesquisa iconográfica apresenta indícios de uma Afrodite armada em cenas da Gigantomaquia e da Titanomaquia, e nos cultos à deusa grega compartilhada por todo o mundo com Ares. Em uma extensa subseção - "As armas de Afrodite ao serviço da cidade" - a autora apresenta diversos papéis marciais e histórias atestadas sobre Afrodite na pólis grega. Começando com Ática, Pironti regressa brevemente ao epíteto de Afrodite Hegemone, antes de considerar os santuários dedicados à deusa depois da Batalha de Salamina e Konon e a vitória em Cnido. Segue-se um extenso tratamento da prece de Corinto, celebrada por mulheres como Simonides e registrada entre outras fontes, em Athenaeus. Os cultos de Afrodite e Ares, em Argos, em Creta, e Tegea vêm a seguir, incluindo não só os cultos dos deuses em si, mas também aspectos de gênero (por exemplo, Telesilla, que lutou contra - e afastou - os espartanos tendo mulheres Argivas vestidas como homens). O relato volta a culminar em Esparta, onde Pironti considera toda a gama de provas de existir uma deusa marcial nessa cidade. Segue-se depois uma breve seção sobre os epítetos de Afrodite, especialmente no que diz respeito a Pontia, Pandemos, e especialmente Strateia. A autora conclui com uma repetição do seu tema favorito: a estreita ligação entre as violentas paixões do sexo e as violentas paixões da guerra. Existem, como se poderia esperar, algumas falhas neste livro. Entre um punhado de pequenos erros fatuais e lacunas, Pironti erra em algumas datas do culto em Kato Symi e apresenta pouca compreensão da extensa e completa iconografia da deusa nua em seu argumento/relato sobre os cultos da deusa em Creta. Este último problema poderia facilmente ter sido corrigido se ela olhasse o "Die Nackte Göttin" de S. Böhm. Em geral, Pironti mostra pouca familiaridade com as questões da arqueologia e da iconografia. Sua recusa de considerar influências orientais ou mesmo indo-européias limita suas interpretações possíveis, um fato que surge quando ela lida com questões como os nomes e epítetos de Afrodite (especialmente Urânia), seu relacionamento com Ares e suas possíveis origens em Chipre, e até mesmo o culto da deusa em Tebas, uma cidade com fortes ligações históricas e míticas com o oriente. Mais problemáticos são algumas questões metodológicas. Para começar, a empurrar-lhe repetidamente sua hipótese, Pironti contradiz as antigas autoridades. Embora se baseie em Pausânias quanto a história da fundação do santuário de Afrodite Euploia em Pireu por Konon, ela descarta a sua explicação do culto e, em vez disso, oferece uma teoria baseada em suas próprias hipóteses, mas não comprovadas em qualquer fonte antiga. O exemplo mais escandaloso é a racionalização que ela faz do discurso de Zeus a Afrodite no Livro V da Ilíada. Para começar, Pironti sugere que Homero não deve ser considerado Pan-helênico, e que ele apenas apresenta uma visão limitada e atípica da Deusa. Outra impropriedade é a tendência de Pironti ao anacronismo. Seu estudo da Afrodite "Negra" em Hesíodo se baseia essencialmente em obras de autores como o romano Plutarco, Pausânias, e até mesmo Clemente de Alexandria. Sua evidência para as histórias de Teseu também deriva de fontes da época romana, e sua análise da tartaruga de Afrodite na iconografia, originalmente apresentada em uma estátua de Praxiteles do século V aEC, também é fortemente baseado em fontes romanas. Finalmente, Pironti tende a forçar as evidências para se adequar à sua hipótese. Por exemplo, quando ela toma a presença de Afrodite nas histórias de aventuras marítimas, tais como os contos de Teseu ou Konon do santuário, como indicativo do papel marcial da Deusa em vez de considerar a sua associação com o mar. O fato de os homens exibirem os traços de beligerância e virilidade sexual virilidade simultaneamente, para ela indica que estes dois conceitos devem ser combinadas sob a égide de Afrodite. No entanto, poderíamos argumentar que os meninos cresceram e passaram algumas 40-50 anos de sua vida sexualmente e militarmente ativos, juntamente com todos os outros aspectos da vida adulta. No final, os argumentos da autora para uma Afrodite marcial não são inteiramente convincentes. No entanto, ela fez um grande serviço ao estudo da religião grega antiga ao quebrar o molde em que tantos estudiosos têm tão alegremente encaixotado Afrodite. "Entre ciel et guerre" manifesta bem os lados mais duros do amor e sexualidade na Grécia Antiga, de uma forma que é mais coerente do que o "Eros the Bittersweet" de A. Carson e bem menos polêmico que o "Eros: The Myth of Ancient Greek Sexuality" de B. Thornton. Este livro vai certamente tornar-se padrão de leitura para qualquer pessoa que pretenda compreender não só a persona de Afrodite na religião grega, mas também o marco conceitual do antigo politeísmo.
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