(texto de 25/01/2014, por Alexandra) Pediram-me para ensinar sobre Kharis, então pensei que isso poderia ser útil para mais pessoas do que apenas uma resposta particular. Então, como fazia Sócrates, vamos primeiro definir as coisas antes de falar delas...
A religião grega antiga era mais baseada na ortopraxia (prática correta) do que na ortodoxia (crença correta). Martin Nilsson, em "Greek Folk Religion" (traduzido pelo nosso grupo AQUI) já citava que a devoção dos antigos era expressa principalmente por atos.
O ritual grego pode quase sempre ser classificado como uma expressão de 'kharis', de reciprocidade. Walter Burkert, em "Greek Religion", diz que "O laço entre o homem e o sagrado é consumado na contínua troca de presente por presente" - aqui o original traz "gift for gift", que poderíamos traduzir "dom por presente" se considerarmos que recebemos graças dos deuses e lhes retribuímos com mimos.
Algumas pessoas podem entender esse processo de forma equivocada como uma forma crua de "pagamento" por uma boa sorte recebida, mas a kharis é algo bem mais sutil e de mais longo prazo do que isso. Simon Price, em "Religions of the Ancient Greeks", afirma que "o sistema ritual grego assumia uma escolha de ambos os lados. Presentes aos deuses não era uma maneira de comprar os deuses, mas sim de criar uma boa-vontade (disposição, afeição) da qual os humanos poderiam esperar se beneficiar no futuro". Assim como você dá presentes a quem você gosta para agradá-lo/a sem ser aniversário dele/a nem nada, e esse ato cria um laço amável e recíproco entre vocês, assim fazemos coisas para agradar aos deuses sabendo que eles também nos darão coisas legais quando for a hora certa.
Às vezes o povo acha que, por os deuses nos conhecerem internamente, eles saberiam que gostamos deles e não precisaríamos demonstrar isso externamente, visivelmente. Isso é uma ideia totalmente moderna (e provavelmente de gente preguiçosa, egoísta e acomodada), que foi influenciada pelo cristianismo. Os antigos sempre foram pessoas de atitude, de coisas reais, palpáveis, tangíveis. Se você está sempre ocupado demais para dar atenção, não quer gastar dinheiro com presentes, manda outra pessoa comprar uma lembrancinha por você, seu cônjuge/amigo/parente vai acabar te deixando. São nossos atos que tornam nossa devoção real - e não mero sentimento de crença. Afinal, os deuses não nos concedem apenas bons sentimentos, eles nos presenteiam com coisas reais também, então por que seriam obrigados a aceitar apenas sentimentos em troca? Seria negligência nossa ignorar isso.
E o que podemos ofertar? Carne, frutas, bolos, refeições especiais, coroas de flores, mechas de cabelo, incenso... Burkert menciona que o ato de oferta mais difundido/conhecido é espalhar um grão de incenso de olíbano ('frankincense') nas chamas. Em termo de ofertas líquidas, as libações de azeite, mel, vinho, água, leite, além de outras bebidas mais modernas. Além das ofertas perecíveis, existem também as ofertas votivas (como cumprimento de um voto ou como presente devocional), que incluem estatuetas dos deuses ou de seus animais, tripodes, vasos, tecidos, anéis, armaduras, máscaras, frascos de óleo, taças, relevos, fitas, cristais, coisas com os símbolos sagrados deles etc - como disse William Rouse em "Greek Votive Offerings": "Não há nada no mundo que não possa se tornar uma oferta votiva".
O ritual no helenismo é algo bem simples, não precisa de uma série de palavras mágicas especiais, nem de penduricalhos e utensílios caros, nem de um monte de gente cada um com um papel a desempenhar. Lave as mãos, acenda a vela, jogue cevada no altar, leia um hino, faça uma oferta. Fazer alguma coisa visualmente bonita já vale muito, sem precisar de discursos e roupas estilosas junto. Pode-se incluir tudo isso se lhe agradar e se lhe ajudar a se concentrar, mas não é exigência. Provavelmente os antigos sacaram que o importante é poder fazer algo em qualquer lugar, sem ter que esperar ter dinheiro ou tempo para ir comprar algo, sem ter que passar dias se preparando etc.
Além de através do ritual, pode-se desenvolver Kharis através do relacionamento com os deuses. Os deuses são reais, não são abstrações ou conceitos. Eles testemunham nossas vidas e nos permitem que testemunhemos as deles, mesmo se isso for além da nossa compreensão e com as nossas limitações de percepção do mundo. Atividades devocionais incluem escrever hinos, dançar, praticar esportes, preservar o ambiente, entre outras coisas, dependendo da deidade a quem se dirigem. Marcel Detienne e Giulia Sissa, em "The Daily Life of the Greek Gods", escreveram: "A crença grega incorporava tudo que era devido aos deuses: sacrifícios, preces, hinos, danças, purificações, ou seja, todos os 'ritos' - as práticas reconhecidas, as quais estavam em conformidade com o que se aparentava dizer ou fazer... Mas 'crença nos deuses' também significava que alguém vivia com eles, tinha negócios com eles, procurava a companhia deles. Socializar com os deuses, cultivá-los, em ambos os sentidos da expressão - tanto de devotar um culto a eles quanto de manter relações amigáveis com eles - frequentando seus altares, se dando bem com os poderes divinos: todas essas coisas eram maneiras senso-comum de dizer que a gente acreditava nos deuses, que lidávamos com eles socialmente". Drew Campbell, em "Old Stones, New Temples" também diz que as pessoas usavam a linguagem do ritual, da arte, da poesia, da música e da dança para expressar seu maravilhamento e gratidão aos deuses gregos. Ele acrescenta que "nossas ofertas de primeiros-frutos, nossas libações, são nosso próprio jeito de dizer o que os Helenos sempre disseram aos deuses: 'Por favor' e 'Obrigado'".
E essas coisas são muito boas! Por isso que vamos terminar este texto indo para as fontes antigas, nesta citação de Plutarco: "nenhuma visita nos deleita mais do que aquelas a santuários, nenhuma ocasião é mais agradável do que a dos festivais, nada que fazemos ou vemos é mais doce do que nossas ações e visões diante dos deuses, quando tomamos parte em cerimônias e danças".
(Referência: livro "Kharis - Hellenic Polytheism Explored", de Sarah Kate Istra Winter. Todos os trechos citados foram traduzidos do inglês pela Alexandra.)
Outras postagens de blogs helênicos que falam de Kharis, em inglês:
-> Kharis, our Relationship with Gods, por Elani Temperance
-> Kharis-Reciprocity, a Relationship of Possibilities, por Kaye (link não existe mais)
-> Reciprocity, por J. Agathokles (link não existe mais)
Artigo:
-> A Note on Memory and Reciprocity in Homer’s Odyssey, por Anita Nikkanen
Livro:
-> Reciprocity in Ancient Greece, por Christopher Gill, Norman Postlethwaite, Richard Seaford
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